O que nós, brasileiros, procuramos no Japão vem da atração pelo oposto? É possível que sim, que a serenidade e a ordem que associamos a muitas de suas expressões seja uma compensação para nossa afobação e bagunça. Mas a própria maneira como os descendentes de japoneses se adaptaram ao Brasil faz pensar que talvez eles não sejam tão antípodas assim. Precisamos pôr mais nuances aí. E quem sabe concluir que o que escolhemos gostar na cultura japonesa não se deve a esse jogo binário de semelhança e contraste, pois o bom do ato de admiração é que ele pode ter sua lógica interna, sua razão inerente. Gostamos do que gostamos porque tais traços são em si admiráveis.
Sempre convivi muito com eles. Estudei com muitos, e a maior parte de minhas namoradas foram japonesas (confesso uma certa fraqueza por olhos puxados). Curiosamente nesse período não gostava da culinária, e era raro ir a restaurante japonês; hoje sou capaz de devorar em segundos uma dúzia de niguiris. Um dos recantos de que gosto nesta caótica São Paulo é o Pavilhão Japonês, no parque do Ibirapuera, aonde vou sempre que posso ou preciso.
Nos últimos anos descobri, por exemplo, os prazeres de ler Kawabata, grande ficcionista de Kyoto, e de assistir aos filmes de Ozu, um cineasta que decupa as histórias com o cuidado com que um ferreiro cria uma katana. Mas não acho que busque nesses prazeres uma semelhança a meu modo de ser, menos expansivo que os brasileiros em média; é minha própria inclinação para uma apreensão mais metódica do entorno o que projeto ali.
Lembro que fui ver a exposição O Florescer das Cores – A Arte do Período Edo. É fascinante não só pelos objetos – quimonos, porcelanas, cerâmicas, espadas –, mas também porque nos põe a pensar sobre como a cultura japonesa partiu da matriz chinesa e desenvolveu estilos totalmente seus, que se distinguem pela delicadeza e economia, por uma recusa da opulência. O período Edo, de 1603 a 1868, foi de relativo isolamento do Japão, quando o shogunato fechou os portos e forjou com rigidez a unidade nacional; ao mesmo tempo, foi nele que se democratizaram a educação e as artes. É o período dos samurais e também do poeta de haicais Bashô, do autor de ukiyo-ê Moronobu e do teatro kabuki.
Os belíssimos quimonos do tipo “kosode”, que representam a natureza em suas estações, com direito a muita simbologia, traduzem tanto a disciplina como a imaginação do período. Por sinal, tenho em casa um livro sobre a influência das estampas japonesas na pintura moderna, em especial a de Van Gogh, e o curioso é justamente ver como o intenso artista holandês se inspirou em sua combinação de forma e fundo para fazer de suas telas de cores vivas uma mistura de drama individual e escape lírico. Que haja um olhar contemplativo em Van Gogh devemos ao ukiyo-ê.
Já um romance que acabo de ler, Eu Sou Um Gato, de Natsume Soseki (1867-1916), mostra outro Japão, aquele que já interage fortemente com a cultura ocidental, principalmente com a literatura inglesa, da qual foi professor em Tóquio. O livro, que tem um humor irônico, é escrito em primeira pessoa por um gato que, à maneira de Swift, descreve o comportamento dos humanos e encontra uma imbecilidade inexistente entre animais… Seu amo, Kushami, um professor medíocre, fala o tempo todo por meio de citações e chavões e jamais consegue coordenar desejo e realidade. Como tantos intelectuais, é incapaz de honestidade intelectual. Soseki não se encaixa na imagem dos japoneses como nacionalistas de pouco humor.
Isso vale para muitos outros aspectos. Se você acha que os japoneses são “recatados”, é porque não conhece a vasta cultura do erotismo que existe no país, como em mangás e na TV. Se você acha que sua arte é apenas realista, voltada especialmente à representação da natureza, assista a Contos da Lua Vaga, de Kenji Mizoguchi, de 1953, enfim em DVD no Brasil. O filme se passa no período feudal e parte de uma situação crível – a contraposição entre um homem que quer ser samurai e outro que quer ser comerciante durante uma guerra – e aos poucos vai se tornando fantástico, como numa história de Poe ou Conrad, a tal ponto que os personagens parecem como vultos a navegar sob a lua vaga.
Nunca estive no Japão, e ainda me parece um sonho um pouco distante, mas os poucos japoneses “originais” que conheci me encantaram com a cortesia e o respeito que, dizem, fazem parte do cotidiano daquela sociedade. Ela tem problemas – zonas obscuras de poder, alto índice de suicídio, problemas com seu passado militar e tudo que dele decorre –, como toda sociedade tem, mas tem qualidades que raras têm. Muitas pessoas parecem pensar que sushi é tudo igual, como saquê é tudo igual e… como japonês ou “japa” é tudo igual. Nem com mais cem anos vão perder esse preconceito. Azar delas.
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