Crítica de Cinema – Texto publicado originalmente em A ARCA, em 16/12/2004.
Quem nunca sentiu aquela vontade incontrolável de dar uns “crocs” na cabeça daquele insuportável priminho pentelho, mimado e chorão que existe em todo clã que se preze? Levanta a mão quem nunca teve este sentimento, por mais politicamente incorreto que seja. Eu já tive vontade, admito!
Mudando de assunto radicalmente: sejamos francos. O Natal nos cinemas neste ano está de lascar de tão sofrível. Bem, quando digo isso, não me refiro a longas como o já clássico Os Incríveis, que está fazendo a alegria da criançada e dos marmanjões como nós, mas sim a filmes com temáticas natalinas. É uma enxurrada de produções fraquíssimas, que chegam por aqui com uma péssima fama e amargando fracassos retumbantes de bilheteria. Só lixo. Duvida? Então olhe para Um Natal Muito, Muito Louco (horrível filme com Tim Allen e Jamie Lee Curtis, já considerado um dos maiores abacaxis de 2004), Sobrevivendo ao Natal (com Ben Affleck, que de tão “bom” foi praticamente ignorado pela maioria das salas de exibição), Anjo de Vidro (este, coitado, ninguém sabe de onde veio) e a tortura do ano, aquilo que atende pelo nome de O Expresso Polar (leia a crítica d’A ARCA e entenda porque eu mando dizer que não estou sempre que o Pichuebas, o El Cid ou o Fanboy me telefonam).
O que eu nunca poderia imaginar, no entanto, é que o único longa realmente FERRADAÇO nesta “safra natalina” de 2004 apresentasse um Papai Noel completamente tosco: bêbado, fumante como uma chaminé, pervertido e absolutamente boca-suja (!). É exatamente isto que acontece em Papai Noel às Avessas (Bad Santa, 2003), comédia de humor negro que chega às nossas telonas com exatamente um ano de atraso. Não só bom: o longa, dirigido por Terry Zwigoff (do inexplicavelmente inédito por aqui Ghost World), é de molhar as calças de rir. Arrisco a dizer, numa boa, que se trata do melhor filme de comédia que passou pelos cinemas brasileiros neste ano que já está acabando. Se alguém aí acha que estou exagerando, desafio a citar um único longa que tenha feito o espectador gargalhar do começo até o fim, sem apelar para grosserias gratuitas do tipo Todo Mundo em Pânico.
Mas espere aí: grosserias gratuitas? Pois é, apesar de não parecer, Papai Noel às Avessas, mesmo esculhambando o gênero natalino e com um palavrão a cada minuto, é qualquer coisa, menos grosseiro. Ao contrário: o roteiro de Glen Ficarra e John Requa (do infantil Como Cães & Gatos) é bem construído e cheio de tiradas inteligentes. E os tais palavrões e situações “apelativas”, tão alardeados no lançamento do longa nos Estados Unidos, estão dentro do contexto e são bem justificáveis. Afinal, quando se vê o resultado final, percebe-se que seria impossível contar esta história “suavizando” uma única linha do roteiro que fosse. Portanto, não se deixe enganar pela falsa modéstia de alguns pseudo-críticos que malharam o trabalho de Terry Zwigoff. Até mesmo porque não tem nada de tão ofensivo assim.
Bem, o tal Papai Noel tosco e devasso é Willie (o excelente Billy Bob Thornton, se superando a cada trabalho), sujeito beberrão e desbocado. O cara não é má pessoa, como explica de cara na primeira cena do filme. Pois bem, a cada final de ano, Willie põe em prática um plano simples mas engenhoso: ele e seu parceiro, o anão Marcus (Tony Cox, o ladrão de esposas de Eu, Eu Mesmo & Irene, tão engraçado e bom ator quanto Thornton), empregam-se como Papai Noel e seu ajudante Elfo em lojas de departamento, para ter acesso ao lugar e roubá-lo em plena noite de Natal. Assim, os dois garantem sua conta bancária até o próximo Dezembro.
Chega mais um ano e as coisas estão aparentemente as mesmas: Marcus fecha contrato com um shopping gerenciado pelo estranho Bob Chipeska (o falecido John Ritter, em seu último papel no cinema), e lá vão os dois passar uns dias como o bom velhinho e seu ajudante, para manter as aparências. Os problemas começam a pipocar quando Willie mergulha fundo na bebida e começa a comparecer no trabalho travadão e cada vez mais boca-suja, dando umas escapadas para carimbar a mulherada dentro de provadores e mandando “àquele lugar” qualquer um que lhe dirija a palavra – inclusive a criançada!
Este comportamento desperta a atenção do chefe de segurança do shopping, Gin (Bernie Mac, talvez o único ponto negativo), que promete se tornar uma pedra no sapato da dupla. Como se não bastasse, Willie ainda se envolve com a garçonete Sue (a engraçadíssima Lauren Graham, a Lorelai de Gilmore Girls), uma ninfomaníaca obcecada por Papais Noéis (!), e passa a ser perseguido pelo pivete problemático e figuraça que ele chama “carinhosamente” de “the kid” (o hilariante e promissor Brett Kelly), que… Bem, é melhor parar por aqui!
Papai Noel às Avessas é, acima de tudo, um trunfo de roteiro. A história é bem montada, e mesmo com toda a heresia cometida contra a lenda do velhinho batuta, o desenrolar é mágico e passa uma lição bacana de que qualquer pessoa merece redenção – fato este que se desenvolve sem forçar a barra em momento algum, destacando-se aí a ótima cena final. Mas o ponto forte do roteiro não chega a ser tanto seu enredo num conjunto, e sim os fantásticos diálogos. Em determinado momento, por exemplo, um garoto pergunta: “Você é mesmo o Papai Noel?”, ao que Willie responde automaticamente: “Não, sou contador. Uso essa m**** porque é moda!”. Pra se ter uma idéia, imaginem diálogos memoráveis escritos pelos ingleses psicos do Monty Python… mas sem a sutileza típica dos britânicos. Achou esta última fala bacana? Vamos ver então quando um dos personagens soltar o já clássico: “Você é o mais patético verme burro comedor de m**** que já saiu da bunda de um ser humano!”. Vixe! E é um filme natalino…
Lógico que os pontos positivos não param por aí. Tem também as ótimas atuações, principalmente de Thornton e Tony Cox (além de uma participação especialíssima – e não creditada – de Cloris Leachman, como a avó maluca do menino) e a fita termina no tempo exato de não se tornar cansativa. Ao final, Papai Noel às Avessas vale centavo por centavo do ingresso. É bom saber que nem só de porcarias como Todo Mundo em Pânico e American Pie vive o cinema americano de comédia. E agora já posso dizer que os meus gloriosos camaradas d’A ARCA não me odeiam tanto quanto eu pensei. Obrigado, Papai Noel, por ter resgatado meu Natal das cinzas! Quer dizer, isso se aqueles três doidos não inventarem de me mandar pra assistir o filme da Xuxa ou o da Eliana…
Só um comentário breve: é politicamente incorreto, sim. Mas e daí? Quem não adora ser politicamente incorreto de vez em quando? Sinceramente, o filme tranformou em imagens aquela minha vontade reprimida de dar um peteleco na cabeça daquele pivete chorão e mimado que existe em toda família! Yeah!
CURIOSIDADES:
• O diretor Terry Zwigoff se tornou popular no circuito indie ianque quando dirigiu em 2000 Ghost World, versão live-action da cultuada comic book de Daniel Cloves. O longa, elogiadíssimo, narra as (des)venturas das amigas de colégio Enid (Thora Birch) e Rebecca (Scarlett Johansson). Inexplicavelmente, a única passagem de Ghost World pelo Brasil foi através da Telecine, que o exibiu durante um curto período de tempo com o título Mundo Cão. Não passou pelos nossos cinemas e não existe em vídeo, o que é um fato estranho considerando-se que o filme é tido lá fora como um dos melhores dos últimos anos.
• O papel de Billy Bob Thornton foi disputado a tapa por dois grandes pesos-pesados: Jack Nicholson e Bill Murray. Nicholson quase chegou a assinar contrato, mas à epoca das filmagens já estava comprometido com a produção de Alguém Tem Que Ceder; já Bill Murray preferiu se mandar ao Japão para rodar o excelente Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola.
• Billy Bob Thornton admitiu em uma entrevista que se embebedou pra valer em muitas cenas do filme.
• Entre dezenas de filmes, Tony Cox atuou em Star Wars – Episódio VI: O Retorno de Jedi, debaixo da fantasia de um dos Ewoks.
• Papai Noel às Avessas ganhou recentemente uma versão sem cortes, rebatizada Badder Santa, com sete minutos a mais. Esta versão ostenta um recorde de profanações em filmes de Natal: há exatamente 170 usos daquela palavrinha linda que começa com “F”, 74 usos de “shit”, 31 usos de “ass”, 10 usos de “bitch” e pelo menos uma utilização de “bastard”, de variadas formas. Ao todo, são mais de 300 citações a palavrões e expressões de conotação sexual.
• A produção executiva do filme, assim como seu enredo original, é dos Irmãos Coen.
BAD SANTA • EUA/ALE • 2003
Direção de Terry Zwigoff • Roteiro de Glen Ficarra e John Requa
Elenco: Billy Bob Thornton, Tony Cox, Brett Kelly, Lauren Graham, Lauren Tom, Bernie Mac e John Ritter.
91 min. • Distribuição: Dimension Films/Imagem Filmes.
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