O século XX pode ser considerado o século da consolidação dos meios de comunicação de massa. Como já ressaltou Walter Benjamin[1], a reprodutibilidade de obras até então únicas permitiu que, sem pensarmos aqui nas suas perdas mais subjetivas, a arte se democratizasse, fazendo-se alcançar cada vez mais esferas da sociedade, até que chegássemos num mundo completamente visual como o que temos hoje. Nesse contexto, o cinema foi a arte privilegiada por sua capacidade de sensibilização e reconhecimento, principalmente pelo aparato governamental de diversos países – e mais ainda, pelos governos totalitários.
A partir da Primeira Guerra Mundial, os Estados envolvidos nos conflitos perceberam a capacidade propagandística do cinema, mas foi apenas com a Segunda Grande Guerra que a relação entre Estado e cinema cresceu, se aperfeiçoou e se tornou indispensável para os regimes. “De todas as artes, o cinema é para nós a mais importante. Deve ser e será o principal instrumento cultural do proletariado”, disse Lênin na ocasião da Revolução Russa – e atentou diversos outros líderes que, até hoje, sabem da importância desse meio.
Talvez tenha sido o regime nazista de Hitler aquele que mais se utilizou dessa nova forma de propaganda. Baseado principalmente no modelo industrial cinematográfico norte-americano – uma democracia liberal, no entanto, que utiliza a arma do cinema de maneira muito parecida com os regimes totalitários[2] – houve uma preocupação sistemática na produção em escala de filmes que realçavam os predicados do regime. Exemplos não faltam dessa prática, mas podemos citar aqui o brilhante e assustador O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl, de 1935, resumo definitivo do que foi a máquina cinematográfica hitlerista.
Ao contrário do que ocorreu na Alemanha, porém, a indústria cinematográfica italiana sofreu um controle muito menor por parte do governo Mussolini. Apesar da criação do Instituto Luce, dedicado à produção oficial de noticiários e alguns poucos filmes, percebemos que produtores e diretores mantiveram certa independência mediante o regime fascista. Este, no entanto, estava preocupado muito mais em passar uma imagem positiva do indivíduo italiano do que em debruçar-se sobre questões mais políticas e, para isso, as referências ao Império Romano são infinitas. Talvez, inclusive, tenha sido essa certa liberdade que possibilitou que a geração posterior à Segunda Guerra Mundial, tão aclamada pelos críticos, se tornasse grande: figuras como Roberto Rossellini e Vitorio de Sica aprenderam sobre o cinema na Cinecittà, no Centro Sperimentale di Cinematografia, louvável realização do governo Mussolini.
Porém, nada mais de benéfico em termos humanos trouxe esse momento histórico a que nos referimos. Nessa “Era das Catástrofes”, como sugere o historiador Eric Hobsbawm[3], a destruição física promovida pelas duas grandes guerras é acompanha da destruição total de estruturas que, até então, sustentavam o mundo de uma maneira geral. É, também, o período da ascensão dos governos totalitários em oposição às democracias liberais que aparentemente se esfacelavam que convoca dúvidas existenciais quanto ao papel do indivíduo na sociedade e na coletividade. É o momento histórico que se precisa perguntar: como foi possível chegar a isso?
Assim, o clima de destruição na Itália do pós-guerra não impediu mas, ao contrário, impulsionou, um sentimento geral de reconstrução. E, para tanto, o cinema é uma de suas principais fontes de inspiração. Em 1945, por exemplo, logo após o fim da guerra, Rossellini filma aquele que seria o marco primeiro do que se chamou neo-realismo italiano: Roma: Cidade Aberta. A paisagem passa a ser a principal personagem dos filmes, mesclada sempre com elementos que ressaltassem o caráter endógeno e simples da produção: dialetos locais, diálogos simples, iluminação natural e atores, na maioria das vezes, não-profissionais. Um cinema da realidade, que tratava dos problemas de um país em reconstrução: o desemprego, a reforma agrária, a pobreza, a situação caótica das cidades, porém preocupados sempre com a coletividade, nunca com o indivíduo.
O neo-realismo italiano tratou dos temas da reconstrução de um país destruído pela guerra, as possibilidades que viriam a partir daquele momento e uma enorme reflexão sobre os erros do passado, contando com grandes nomes como Rossellini, De Sica e Visconti. No entanto, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a vitória da aliança dos países capitalistas, a estabilização temporária desse sistema promove uma “Era de Ouro”[4] de profundas transformações econômicas e sociais, que trazem consigo novos questionamentos e posições perante o mundo. Já em 1950, os efeitos da crise econômica e moral vão esmaecendo, e um novo problema instaura-se na sociedade italiana (e mundial, podemos dizer): uma espécie de novo “mal do século”. A Europa consegue se reerguer diante do terror nazista mas, ao contrário das expectativas, o novo mundo que se estabelece é ainda pior. A ameaça passa a ser velada, não por interesses personificados em figuras como Hitler ou Mussolini, mas na possibilidade de um ataque de poderes nunca antes vistos: o espectro da guerra fria e a destruição completa.
A angústia da guerra nuclear e da inserção do homem nessa sociedade tão modificada nunca foi tão bem captada como pelas lentes do italiano Michelangelo Antonioni. Nascido em 1912, em Ferrara, Antonioni se formou em economia, mas estudou no reconhecido Centro Sperimentale di Cinematografia, onde conheceu Roberto Rossellini – com quem mais tarde viria a trabalhar. Assim, Antonioni foi criado dentro dos padrões neo-realistas do cinema italiano, do qual, aos poucos, foi se libertando em seus filmes.
A marca neo-realista ainda se vê nos seus primeiros filmes, mas, conforme desenvolve um estilo próprio, Antonioni transforma seus filmes naquilo que lhe rendeu o título de “cineasta da incomunicabilidade”, e muitas vezes lhe conferiu também a idéia de um cinema “sobre o tédio”. O diretor na verdade ansiava pela captação do tempo e do espírito ali contido e, para tanto, valeu-se de um rigor impressionante na montagem das películas. Todas as cenas têm duração específica, toda palavra tem uma função única. Nada está ali por acaso. A simplicidade que Antonioni repassa em seu filmes têm a ver com a crítica que faz à sociedade moderna e extremamente modernizada, onde as relações entre as pessoas já não têm significado e tudo parece sem sentido, tendendo inevitavelmente ao tédio. Também se tem a percepção da confusão entre vida pública e privada, as quais Antonioni articula com longas e contínuas tomadas em plano seqüência.
A Aventura (1959), A Noite (1960), O Eclipse (1961), formam a ”trilogia da incomunicabilidade” – algo que o próprio cineasta não concordava, pois afirma que, pelo contrário, tudo o que procurava em seus filmes era a comunicação com o público. Nos três filmes, o diretor abandona o olhar sobre o proletariado, herdado de seus colegas, e se debruça na questão do burguês médio italiano. Em A Aventura, o que seria um thriller sobre o desaparecimento de uma mulher torna-se uma reflexão existencial, principalmente sobre o tédio na vida feminina. Já em A Noite e O Eclipse, o tema recorrente é a relação entre casais, nas quais o tédio, novamente, é o fator que impulsiona a busca de affairs, como no caso de Monica Vitti e Alain Delon no segundo título. O Eclipse é considerado a obra-prima acabada de Antonioni, no qual a emblemática cena do minuto de silêncio na bolsa de valores que se choca com a balbúrdia do pregão reflete claramente o mundo confuso em que se vive. É um mundo de relações desencantadas, “coisificadas” e sem alma.
Outro grande tema da sociedade do pós-guerra é a identidade, que foi retratada por Antonioni nos filmes Blow Up – Depois Daquele Beijo (1966) e Passageiro: Profissão Repórter (1975). Estrelado magistralmente por Jack Nicholson, e inspirado no clássico O Falecido Mattia Pascal, de Pirandello, o filme conta a história de um personagem dado como morto que assume outra identidade, vivendo essa outra vida até perceber que está participando de uma situação muito mais complicada. Já Blow Up é uma adaptação livre de Las Babas del Diablo, de Julio Cortázar, onde um fotógrafo registra um crime involuntariamente. Uma admirável crítica àquilo que deixamos de ver no real e procuramos enxergar somente através do “olho moderno”: as lentes da câmera. Também pode ser considerado um relato sobre a função do cinema na visão do diretor, que teria o papel de testemunhar aquilo que a sociedade contemporânea não consegue – ou se recusa a – ver.
A identidade é um tema que reflete de maneira geral a angústia do pós-guerra, já que traz consigo também o problema do indivíduo: ao mesmo tempo em que a sociedade é reconhecidamente individualista, o próprio indivíduo sucumbe a pressão para encontrar seu lugar nessa sociedade, recorrendo muitas vezes a soluções drásticas para resolver o desespero, como é o caso do suicídio, em As Amigas (1955), e em O Grito (1957), apologia da obra de Munch.
Antonioni se afastou dos métodos tradicionais de filmagem para inserir imagens que representassem melhor o silêncio e a angústia de seus personagens. Procurando a simplicidade, jogava com o campo e contracampo e com tempos mortos, filmando grandes seqüências em que, aparentemente, nada acontecia mas, na verdade, espelhavam o vazio dos sentimentos das personagens, o “mal-estar” da civilização. O diretor ressalta a culpa da sociedade moderna na perdição do verdadeiro significado individual das pessoas e valoriza a significação dos sentimentos através dos gestos e das expressões, aproximando seus filmes muito mais da descrição detalhada da literatura do que do bombardeamento de imagens tão caro ao cinema. Mais um indício de sua intensa aversão às relações mundo moderno.
“Filmar, para mim, é viver”, disse Antonioni. Numa triste ironia, o cineasta da incomunicabilidade sofreu, em 1985, um derrame cerebral que o deixou parcialmente paralisado e impossibilitado de falar. Ainda assim, continuou trabalhando e filmou, ao lado de Wim Wenders, Além das Nuvens (1995), e seu último trabalho em 2004, Eros, juntamente com Wong Kar-Wai e Steven Soderbergh. Antonioni faleceu em 2007, menos de 24 horas depois da morte do sueco Ingmar Bergman, contemporâneo, que lhe inspirou pelos caminhos do silêncio nas filmagens das relações da (in)comunicação humana.
Attab. [1] BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. in: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994. [2] PEREIRA, Wagner Pinheiro. Guerra das Imagens: Cinema e Política nos Governos de Adolf Hitler e Franklin D. Roosevelt (1933-1945), tese orientada pela Profa. Dra. Maria Helena Rolim Capelato e defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), em 2003. [3] HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. São Paulo, Companhia das Letras, 1995 [4] Idem
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